Quando supostamente o Criador existe

 

O texto de hoje é descaradamente inspirado neste. Li o do Pedro Ribeiro várias vezes. Emocionei-me. Revi-me em muitas passagens e sucumbi à vontade de escrever um só meu.

É sobre momentos em que, mesmo não acreditando em intervenções divinas, caso elas existam, estão com certeza em ocasiões como  as que partilho convosco.

 

 

Quando fui mãe por duas vezes e no primeiro beijo dado soube que aquele é que seria o tal amor para sempre. Quando acabei o meu curso e mostrei, a quem duvidava, que eu era capaz de ser alguém. Quando os dias começam cheios de sol, fora e dentro de mim. Um café amargo e a ferver. Chocolate. Muito chocolate. Os almoços de domingo, em família, onde as conversas e as risadas se atropelam. Quando me dizem que têm orgulho da pessoa em que me tornei. Quando me dão aquele abraço que parece não querer terminar. Uvas grandes e doces. Os dias de chuva vistos pela janela. Pisar a areia molhada. A lembrança dos meus avós. Rever as fotografias de quando era pequenina e sorria cheia de inocência. Quando o meu filho mais velho me diz "o que faria eu sem ti?". Quando o meu filho mais novo me diz "sabes que te adoro?". Paris. Quando aquela música me emociona até às lágrimas.Velas acesas no quarto. Sexo. Amor. Sexo com amor. Quando cozinho com tempo e com sentimento. Viajar. Quando me olho ao espelho e penso que nem estou assim tão mal. Lingerie preta. Perfumes suaves. Amizades sem tempo nem hora marcada.

 

Quando o Sporting vence o jogo no último minuto. O cheiro da maresia. Quando ouço um sentido "Gosto de ti". Um olhar cúmplice. Os fins de tarde de Verão com o céu raiado de vermelho. Jogar à bola com os meus filhos e ouvi-los dizer que sou óptima guarda-redes. Chocolate quente. Quando leio poemas de Fernando Pessoa e heterónimos. O cheiro da roupa lavada. Massagens. Meter-me na cama feita de lavado. Chá de menta. Ir ao Porto. Não ter hora para acordar. Quando esqueço que fui infeliz na minha infância. A voz da Maria Bethânia. A mestria do Slash  na guitarra. Tocar nos objectos que foram do meu pai. Quando me pedem para ler em voz alta tempos infinitos. Quando ouço o Variações cantar " O engate". Quando mudo de visual e acho que fiquei bonita. Quando vou à aldeia e bebo água da fonte. O aroma do pão acabado de cozer no forno de lenha. Quando me arrepio ao ouvir o hino nacional ser cantado por milhares. As tuas mãos no meu cabelo. As fotos dos meus priminhos que vivem lá fora. As gargalhadas dos outros. E as minhas. Cerejas.

 

Os gestos e atitudes que me fazem acreditar na sinceridade e na pureza dos sentimentos. Quando sei onde errei. O crepitar da lenha. Pequeno almoço farto e sem pressas. Confundirem-me com uma italiana em plena Place du Tertre. Quando sou o Mundo de alguém. Salada de pêra abacate com camarão. Duche quente. Quando me enfio na cozinha com os meus filhos a fazer bolachas e biscoitos. Quando eles me dizem "és linda!". Todos os meus cd's do Boss. O Louvre. Quando vou no carro com a música aos altos berros. Quando ouvi que era benigno. A mão quente procurando a minha, gelada. Quando sentem a minha falta. O cheiro da canela. Quando ligo a alguém que é capaz de estar a falar comigo durante uma hora. Quando vejo Denzel Washington ou Anthony Hopkins no seu melhor. Conduzir muitos quilómetros. Quando ouço o "last Kiss" dos Pearl Jam. E sempre que ouço Eddie Vedder. Fugir à rotina. O teu cheiro na minha almofada. Andar descalça. Cubos de gelo a derreterem no meu corpo. Sms que terminam com "adoro-te muito". Jogar Mahjong. Torradas. Aconchegar os meus filhos. Quando resolvo aquele problema que me tem perseguido. Os livros do Eça de Queirós. Não ter de andar de casaco. A sensação de ter ajudado.

 

Quando alguém confia em mim e me faz confidências. Aquele convite inesperado para sair. Deitar conversa fora com os amigos. Edredões. Colher fruta no quintal. Quando os meus amigos me dizem, de peito aberto, "Gostamos de ti, gaja! Fazes aqui falta!". Calçar ténis da Nike. Querer aprender a tocar viola e a fotografar. Quando penso que amanhã vou ser mais forte. Chorar de alegria. Aninhar-me no sofá e ver séries até adormecer. Quando estabeleço metas a atingir. Quando as atinjo. Uma casa caiada de branco e de risca azul, no coração do Alentejo. Doce de abóbora com requeijão. Quando penso que não gosto de fado e deliro com a voz de Carlos do Carmo. Caminhar na mata. Flores do campo nas jarras. Os beijos demorados. Andar todo o Verão de sandálias e chinelas. As esculturas do João Cutileiro. Entrar numa livraria e ter vontade de estourar o ordenado todo. Quando me aceitam tal como sou. Quando pedem a minha companhia. Os teus dedos a percorrerem as minhas costas. O canto das cigarras numa tarde de Verão. Os elogios. O vento que me beija o rosto. Quando o meu filho, na cama do hospital, e cheio de dores, me dava a mão e me acariciava, pedindo-me desculpa por eu ter de passar dia e noite junto dele. Deitar-me na relva. Quando penso em coisas que me fazem sorrir. Escrever. Recheio de sapateira com caril e pinhões. Ler Marguerite Duras, em francês mesmo.

 

Quando vamos na mesma "direcção". Quando a saudade é interrompida por momentos únicos. Quando deixamos os nossos olhos soltarem palavras. O luar. A simpatia. A generosidade. Quando fumamos um Black Devil a meias. Pipocas  e filmes de animação e eu no meio deles. Quando o mais novo pede que o irmão lhe vá dar o beijinho de boa noite.

 

A dávida que é a vida. A felicidade que não tem preço. As avenidas que são alguns corações. A frontalidade. Os sentimentos genuínos. O Amor que se enrosca em nós e nos faz pensar que, tal como diz o Vinicius, "que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure". Nós.

 

 

 

publicado por Teia d´Aranha às 22:04 |